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domingo, 30 de outubro de 2011

Dulcinéia - o amor encantado de Quixote - parte II

Tuesday, March 21, 2006


Dulcinéia - o amor encantado de Quixote - parte II


           O caminho de Quixote é a busca das semelhanças e neste caminho a similitude e os signos, segundo Foucault, rompem as suas antigas alianças, ou seja, as do Renascimento e do Classicismo em relação às coisas e os seus significados, decepcionando e conduzindo à visão e ao delírio. Entretanto, na obra de Cervantes salienta-se, segundo Carpeaux (1980), o elemento platônico e renascentista, sem, contudo, deixar de transparecer elementos do Barroco idealizado. Desta forma, a escrita e as coisas, o significante e o significado não se assemelham mais, pois, de acordo com Foucault (1990), “Dom Quixote assumiu sua realidade. Realidade que ele deve somente à linguagem e permanece totalmente interior às palavras como o mundo, mas nessa tênue e constante relação que as marcas verbais tecem de si para si mesmas”. (p. 63). É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo? Cervantes com certeza soube inventar esse jogo em “Dom Quixote”.
                 Assim, nessa invenção lúdica do real/irreal que permeia toda a obra, o jogo de amor ideal é o que mais movimenta o romance, visto que, quando Quixote decide partir para as batalhas do cavaleiro andante, decide também dedicar suas lutas a uma mulher amada, assim como faziam os cavaleiros andantes dos livros que lia. Assim, segundo Gerchunoff (1922), nosso herói ao andar pelos campos de Montiel e imaginar o que se dirá de sua fama nos séculos vindouros, fixa Dulcinéia Del Toboso com a condição primordial de dama de seus pensamentos: é desconhecida e está ausente. Mesmo Dom Quixote nos dirá alguma vez que não está muito seguro de sua existência real. Isso não o preocupa. Todo bom cavaleiro tem a necessidade de uma dama a quem possa fazer homenagens e a cujo nome possa encomendar nos momentos críticos em que põe em perigo sua vida.
                  Esse amor desinteressado, como a glória mesma, que é o objeto de suas andanças heróicas, cheias das aventuras do engenhoso fidalgo, movimenta toda a trama, transforma a realidade petrificada do fidalgo Quesada (?) - senhor de 50 anos que vivia numa vila com a sobrinha e sua ama - em realidade dinâmica e cheias de aventuras, assim como afirma Auerbach (1987) sobre a condição desse fidalgo antes de “enlouquecer” e partir para suas andanças “...;estava como paralisado pelas limitações que lhe eram impostas, por um lado, pela posição social, e por outro, pela sua pobreza”. Assim para Auerbach, podemos presumir que essa decisão seria uma fuga da realidade petrificada que se tornara insuportável para uma realidade ficcionalizada que está em constante movimento. E se partir para as aventuras, porque não levar consigo seu amor, mesmo que em fantasia? Tornando, assim, o caminho menos espinhoso, mais nobre e sublime como o ideal de justiça do cavaleiro andante.
                    Assim fez Quixote, Dulcinéia aparece a cada instante, em cada curva do caminho, em torno de cada árvore surge sua imagem radiante. Sancho conhece Dulcinéia. Já a viu agitando sedas ou levando o atado de hortaliças como lavradora que era, e quando questionado pelo cavaleiro como era sua amada, Sancho responde que ela era feia e possuía um cheiro de homem suado. E apesar disso, o prestigio de Dulcinéia não decai. A claridade de sua figura ilumina toda a novela. É a princesa escolhida para que fosse a amada do grande sonhador. Que importa que cada vez que a invoque nos lembremos da lavradora encurvada sobre suas hortaliças, da Aldonza Lorenzo que serviu de gérmen real a criação alucinada? Questiona Gerchunoff (1922). Ainda assim, preferimos os desvario de Quixote a razão dos que tratam de induzi-lo ao abandono do oficio andante ou dos que se divertem com sua escassa sanidade, porque sabemos que a realidade consciente também não nos é suportável e é melhor sonhar com aventuras e um amor idealizado que estar de frente à uma verdade petrificada. Assim, sua loucura não é mais que uma forma da razão extraordinária, que está acima da realidade acessível e da lógica corrente. Dulcinéia de Toboso, os encantados moinhos gigantes e todos que habitam a sua imaginação, possuem a força dos que vivem em um mundo encantado e acima dos seres reais.
            Segundo Gerchunoff (1922), Dulcinéia é a chave de todo livro. Se eliminássemos Dulcinéia das páginas do livro, veríamos apagar-se todas as batalhas e as nobres figuras que se movem em seu extenso relato. Quixote por amá-la leva a cabo penitências penosas; para honrá-la se arrisca nos mais receosos combates; sob sua invocação se lança a batalha; servindo sua augusta princesa, se move em defesa dos fracos e ampara os tristes. Compadecemo-nos, pois, do pobre homem que sorri ante a imagem da lavradora transformada pela loucura em princesa elevadíssima, principalmente quando Quixote encontra à sua frente Aldonza Lorenzo, a própria realidade de sua insana consciência, e mesmo assim não se deixa enganar por seu escudeiro Sancho, antes, ele mesmo afirma que aquela não é sua amada Dulcinéia. Esse momento afirma Auerbach “só serve para o efeito contrastante” o estilo baixo da lavradora e a elevada retórica de Dom Quixote torna eficaz a quebra estilística do barroco alto/baixo, claro/escuro etc. Podemos entrever, nesse instante, que se aproxima uma importante crise.
               Dulcinéia é “a senhora dos seus pensamentos”, protótipo de beleza, ideal de mulher amada dos romances de cavalaria e o próprio sentido de sua vida. Segundo Auerbach, Quixote supera o choque, encontra a saída que o liberta tanto do desespero quanto da cura: a amada está encantada. Ele é alvo de magos invejosos que o perseguem. Assim suplanta a crise ao negar a realidade de uma mulher tão feia e vulgar, verdade que contrasta com seu discurso de amor platônico, e enfrenta a situação no campo da ilusão. A dificuldade reside no fato de que na idéia fixa de Dom Quixote, o nobre, o puro e o redentor estão ligados diretamente com o insensato.
                Para Auerbach, “A vontade idealista deve estar de acordo de tal forma que uma penetre na outra e surja um verdadeiro conflito”, porém o idealismo de Quixote não é assim, não se fundamenta nos fatos concretos da vida, embora tenha a consciência do real, ela o abandona tão logo o ideal de cavaleiro andante se fixa nele. Tudo o que faz depois dessa decisão é tão sem sentido para nós que não conseguimos no desvencilhar do mundo real, assim o que temos é uma grande, cômica e saborosa confusão.
                         Enfim, para Auerbach, o sentimento de dom Quixote é verdadeiro e profundo, dulcinéia é realmente a dona de seus pensamentos, e ele está imbuído de uma missão que considera o mais alto dever de um homem: ser fiel, valente e disposto a qualquer sacrifício. Um amor tão incondicional que merece admiração, mesmo quando baseado numa ilusão doida, e esta admiração Dom Quixote encontrou em quase todos seus leitores. E quem de nós nunca pensou em fazer loucuras de amor? Quixote teve coragem, rompeu a barreira do real e por meio de suas loucas aventuras dedicou sua vida à mulher amada.
Assim, quando Dom Quixote imaginou o que se diria de seus feitos nos séculos seguintes, talvez não soubesse que se desviando da vida real e da plenitude da razão, nos ensinaria, no profundo mistério de sua vida e de suas obras, que sem a eterna presença do ser amado, nada grande se faz no mundo. Os que não fazem o mesmo, não sonham e não convertem sua existência em oferenda ao bem amado, morrerá na verdade, sem grandeza, sem beleza, na eterna e terrível realidade petrificada.

Bibliografias


AUERBACH, Erich – A Dulcinéia Encantada. In __ Mimeses. São Paulo, Perspectiva, 1987, 290-320.
CARPEAUX, Otto M. - História da Literatura Ocidental, Editora Alhambra, Rio de Janeiro, vol. III. 1980.
FOUCALT, Michel – As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1990. Especialmente cap. 3 Representar:1 Dom Quixote.
GERCHUNOFF, Alberto - La jofaina maravillosa: agenda cervantina Edición digital basada en la de Buenos Aires, Biblioteca Argentina de Buenas Ediciones Literarias, 1922. Publicação: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2004. Acesso em 10/11/2004
SILVA, Robson André – O Jogo da Ficção e da Realidade em Don Quijote de la Mancha, Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 2001.

Ensaio apresentado by  Milka e Ronan, nas disciplinas Filosofia de Linguagem e Teoria da Literatura III, ministradas pelo professor Msc. Maurício Izolan

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